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Quem determina se alguém pode ou não ser músico é o público


Na metade dos anos 50, começou a aparecer uma moçada fazendo um som diferente. Simples e direto.Em verdade, eram duas vertentes que surgiam: uma tocava o violão baixinho, cantava baixinho, fazendo um samba de um jeito diferente, de uma nova maneira, uma bossa nova. A outra turma era um pouco mais barulhenta, mais expansiva, também menos requintada. Pegava a guitarra e, com alguns poucos acordes, construía o que musicalmente queria dizer: ensaiava os primeiros passos do rock’n’roll brasileiro.


Dizendo assim, parece que era apenas brincadeira de turma de bairro, de grêmio acadêmico, nada de muito consequente. Ledo engano. Aquela meninada do banquinho e violão virou a cabeça da geração zona-sul, enquanto o rock made in Brasil assumia lugar de destaque, principalmente, nos bairros periféricos.Quando isso aconteceu, os acadêmicos se indignaram. Perguntavam-se como uma turminha que mal fazia três acordes podia assumir a profissão. A profissão – pensavam eles – era pra quem sabia decifrar uma partitura, registrar os sons no pentagrama.Ou seja: somente eles mesmos poderiam ser músicos, lendo e tocando o que estava escrito.Enquanto eles pensavam, as turmas da bossa e do rock ficavam cada vez mais famosas e ocupavam os programas radiofônicos chegando, assim, a todo o País.


A coisa chegou a um ponto tal, que os músicos tradicionais letrados, ameaçados em seu campo e visando a clássica reserva de mercado, buscaram no Congresso Nacional um jeito de acabar com aquela – segundo linguajar da época – invasão da meninada travessa. Como no futebol, diante do perigo de gol, gritaram pro bandeirinha.


Em 1960, o presidente Juscelino Kubitschek assinou a Lei 3.857 que, no seu artigo 1º, dizia: “Fica criada a Ordem dos Músicos do Brasil com a finalidade de exercer, em todo o país, a seleção, a disciplina, a defesa da classe e a fiscalização do exercício da profissão do músico.” Ora, presidente JK, quem seria esse ser supremo capaz de selecionar, determinar, quem pode ou não pode ser músico? Quem teria autoridade para dizer se Armandinho Macedo – por não saber ler uma nota no pentagrama – pode ou não pode ser músico? Em quem avultaria tamanha autoridade para dizer se aqueles quatro cabeludos de Liverpool podiam ou não ser músicos, já que eles também não sabiam ler uma partitura? Ninguém, eu respondo. Nenhuma banca examinadora do mundo. Nem Beethoven, nem Tom Jobim, nem Bach, nem Mozart, nem ninguém! Quem determina se alguém pode ou não ser músico é o público. Sim, exatamente. É o público quem decide se quer ouvir o artista X ou dançar ao som do Y. Só ao público cabe a escolha entre um show de axé e um concerto da Orquestra Filarmônica de Berlim. É também sua a prerrogativa de comprar o CD – seja lá do que ou com quem for – que lhe atenda ao gosto. Se o público gosta daquele músico, quer ele como o seu músico, então, aquele é o músico. A Ordem dos Músicos do Brasil – um rascunho mal desenhado de ópera bufa – não tem competência para cumprir, sequer, o que determina o primeiro artigo da lei que a criou. E, se nem a primeira ação que lhe justificaria a criação ela consegue praticar, chegamos à conclusão de que é natimorta. Assim sendo, no dia em que teria nascido, 22 de dezembro de 1960, morreu a Ordem dos Músicos do Brasil.

(Por Tom Tavares)

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